Súper
poderes
Não
gosto de festa, mas aceito um convite quando estou súper cansado de
ficar
em casa. De vez em quando vale a pena conversar um pouco, ver alguém
vomitar,
invejar os garotos que já têm namorada ou pelo menos arranjaram alguma
menina
para beijar.
Não levo jeito com as mulheres, sou muito tímido, só sei conversar
sobre filmes e livros e não tenho carro de papai para levá-las em casa.
E claro
que não posso falar sobre certas coisas. Não estou a fim de ser
internado e
passar a vida entupido de comprimidos.
Se não me taxassem de louco, diriam que
sou um ridículo tentando chamar atenção, o que, para as garotas, daria
na
mesma.
Às vezes me dá vontade de usar minha invisibilidade para ficar quieto
num
canto, só observando a galera e rindo das abobrinhas que eles falam.
Mas todo
mundo ia dizer que eu saí sem me despedir, desapareci sem mais nem
menos,
possivelmente porque bebi demais e vomitei. Surgiriam os boatos mais
improváveis.
Eu sofreria pelo menos uma semana de comentários negativos. Seria o
sumidão, o
antissocial, o foge-de-festa ou outro nome idiota.
Uma vez pensei em fazer uma pequena demonstração dos meus poderes,
levantando
alguns objetos, depois dizer que aquilo era um truque que aprendi no Youtube.
Mas seria muito arriscado.
Nas outras festas todo mundo ia pedir para eu
repetir aquele truque, e me chamariam para mais festas, de parentes, de
amigos
de parentes, de colegas do cursinho de inglês, talvez chegassem a me
oferecer
dinheiro para animar aniversário de criança.
E me cobririam de perguntas e
implorariam pela revelação do truque, de modo que cedo ou tarde eu
acabaria
explodindo e gritando para todo mundo que não havia truque nenhum, tudo
era
real, eu simplesmente tinha o poder da telecinese.
Isso me levaria a uma cadeia
de eventos inevitáveis.
1. Todos me taxariam de louco.
2. Minha mãe acreditaria
em todos.
3. Minha mãe providenciaria minha internação.
Por isso preciso me
segurar. Não posso usar meus poderes em público. Tenho que ser rigoroso
com
isso.
E enquanto estive pensando nessas coisas, parece que puxaram assunto
comigo e
não respondi. Agora todos estão rindo e apontando para mim. Entre
cochichos e
olhares enviesados, percebo que colaram alguma coisa nas minhas costas.
Consigo
alcançar a folha e me deparo com a frase: “Não sou desse mundo”.
A raiva chega a me dar azia. Luto contra a vontade de usar a força do
pensamento para explodir as cabeças deles. Ou poderia simplesmente me
concentrar no mais forte e jogá-lo na parede.
Ele cairia no chão com algumas
costelas quebradas, os outros não ousariam me enfrentar. Mas consigo me
conter.
Encosto num canto e rio falsamente, fingindo me divertir. Me ocorre uma
ideia
que pode funcionar: explodir a lâmpada da copa, apenas para desviar a
atenção
de cima de mim.
Ninguém sairia machucado, e o incidente me tiraria do centro da
zombaria. Mas a mãe ou tia de alguém saiu da cozinha e vem pela copa
anunciando
umas empadinhas. Não quero machucar uma inocente, e além disso estou
com fome.
Desisto da pequena explosão e mastigo, resignado, algumas empadas, que
ficam
até saborosas com um pouco de Fanta.
Uma das tias diz que em breve trará o bolo, e só então me dou conta de
que é
aniversário de alguém. Mas eu não trouxe presente, nem refrigerante,
nem faço
ideia de quem devo felicitar. Claro que esse detalhe não me preocupa,
porque
posso ler as mentes dos convidados e descobrir facilmente quem é o
homenageado
da noite.
E, como sou meio canalha, começo pela loirinha que até agora não vi
beijando ninguém. Respiro fundo, fecho os olhos, e penso que, além do
aniversariante, posso escanear alguma coisa que facilite uma aproximação
.
Estou
a ponto de visualizar a cara do sujeito quando uma mão toca meu ombro e
uma voz
feminina pergunta se estou passando mal. É uma gordinha de cabelo
ressecado.
Digo que está tudo bem, louco para voltar à minha concentração.
Mas ela me toca
de novo e diz para eu não ligar para aqueles moleques, que são todos
uns
palhaços tentando descontar sua miséria em alguém.
Começo a simpatizar com a gordinha, mas de repente noto que seus
antebraços têm
pelos demais para um corpo de menina. Meio sem querer, escaneio a mente
dela e
descubro que ela passou a tarde num salão de beleza, alisando os
cabelos
enrolados.
Me pergunto por que a funcionária não explicou que ela também
precisava depilar os antebraços. Não posso escanear essa funcionária,
meus
poderes não vão tão longe. Então lembro da loirinha e vejo que ela não
está
mais na sala.
Fecho os olhos para escanear os quartos e logo me arrependo,
porque as imagens dela com outro cara chegam imediatamente na minha
cabeça, me
gerando decepção e repulsa. Quando volto para a minha visão, o rosto da
gordinha está a um palmo do meu, e seus olhos estão fechados.
Não estava pensando
em beijá-la, mas não sou cruel o bastante para desviar os lábios num
momento
tão delicado. Aceito, conformado, o beijo da gordinha, já pensando numa
desculpa para ir embora mais cedo. Mas a danadinha beija bem, e acabo
relaxando
por alguns minutos e curtindo a fricção suave dos lábios dela.
Estou tocando seus cabelos quando começam novos risos e gritos. Não sei
do que
estão zombando agora, se do fato de eu estar ficando com uma gordinha
de braços
peludos ou de uma gordinha estar ficando com o esquisitão calado que
veio de
outro planeta. Escaneio a mente de uma magrinha e ela está pensando:
“se até
essa baleia pode ficar com alguém, não vai demorar para um maloqueiro
chegar em
mim.
” Um moreno de óculos escuros está concluindo que devo estar chapado
para beijar
uma gorda dessas. Sinto um estranho mal estar e vou para o banheiro,
mas não
estou com vontade de vomitar nem de aliviar os intestinos.
Sento na tampa do vaso e fico apenas me perguntando por que vim a mais
uma
festa, por que saio de casa para encontrar pessoas que só querem me
humilhar?
Escaneio minha própria mente em busca dessas respostas e não as
encontro. De
repente lembro que ainda não felicitei o homenageado da noite.
Chego na sala e, quando dou os parabéns, aproveito para dizer que vou
ter que
sair mais cedo. “Você passou mal? É assim mesmo, tem gente que não pode
beber.”
Sinto que o cara está orgulhoso por seu corpo se dar bem com algumas
latas de
cerveja.
Deve pensar que esse é seu súper poder. Começo a me despedir do
pessoal, “pois é, já vou, etc”. Eles dizem “vai não, fica mais um
pouco”,
enquanto escuto eles pensarem: “que mané, por que ele ainda não sumiu?”
Vou me
despedir da gordinha, mas ela está conversando com umas amigas e não me
dá
muita atenção. Os beijos que trocou comigo talvez fossem apenas a
desculpa para
esse papo de agora, uma espécie de ritual para entrar na turminha das
meninas,
ser aceita por elas e se tornar uma delas.
Ganho um minguado selinho de
despedida. Já não sou mais necessário, já não mereço um beijo longo e
molhado,
simulando desejo.
Decido ir pelas escadas, e quando percebo que estou completamente
sozinho,
flutuo lentamente de um patamar a outro, só para lembrar quem eu sou.
Quando
piso na rua, começa a chover. Gero um brando campo de força ao meu
redor.
Olho,
divertido, os pingos fazendo uma curva na frente do meu rosto.
Não ligo se o
pessoal estiver me olhando. A festa era no oitavo andar, lá de cima não
dá para
ver a trajetória dos pingos. Passo alguns minutos no ponto de ônibus,
mas,
cansado da demora, resolvo tentar outro ponto, na rua transversal.
A chuva está
mais forte e aciono meu campo novamente, uma coisa tão trivial para mim
quanto
assobiar ou cantarolar uma melodia. Então me deparo com uma pequena
surpresa.
A
gordinha da festa passa correndo ao meu lado e, na pressa, nem chega a
me ver.
Nos trechos sem marquise, ela leva a bolsa à cabeça, talvez tentando
proteger a
química que deu uma melhorada nos seus cabelos enrolados. Sinto um
misto de
simpatia e pena.
Fico invisível, corro para perto dela, e dessa vez gero dois
campos, um para mim, outro para minha quase amiga. Mas ela parece não
notar.
Deve ser míope demais para ver que os pingos estão caindo a meio metro
da
cabeça dela.
Deve ser distraída demais para sentir que a água não está tocando
sua pele.
Eu tinha pensado em escanear a mente dela, para saber se ela estava
pensando em mim, mas, diante dessa apatia, perco totalmente a vontade.
Espero
até ela entrar no ônibus, fico visível novamente e sento no ponto, do
lado de
uma velhinha que me olha espantada.
Sei que meu ônibus vai demorar. Eu poderia pegar um táxi, e apagar a
mente do
taxista assim que ele me deixasse em casa.
Ele ficaria completamente
desorientado, se perguntando por que foi até lá. Mas não sou tão
canalha, não
quero prejudicar um trabalhador.
Estou feliz com minha honestidade quando um pivete se aproxima e fica
olhando
para a velha como um cachorro olha para um pedaço de carne. Não preciso
ler
mentes para saber que ele está apenas esperando eu sair do ponto para
voar na
bolsa dela, como urubu em carniça.
Sinto que ele não é muito pesado. Com uma
concentração moderada eu poderia jogá-lo no chão ou atirá-lo no meio da
rua.
Poderia projetar imagens de policiais na cabeça dele, chegando numa
viatura e
ameaçando prendê-lo. Mas, quando chega meu ônibus, prefiro embarcar
calado e
deixar o moleque agir.
Por que eu salvaria uma velha que não hesitaria em me
chamar de louco se eu contasse a ela sobre meus poderes?
Por que eu salvaria
uma idiota que recebe uma pensão do estado para ficar em casa vendo
televisão e
falando da vida dos vizinhos?
Sento no banco do ônibus, feliz por saber que aquele jovem – agora
prefiro
chamá-lo assim, um jovem desfavorecido – está punindo uma velha idiota
que
nunca fez nada para melhorar o mundo.
Acho que essa é a diferença entre mim e
os heróis.
Não amo a humanidade, não tenho a menor vontade de salvá-la do que
quer que seja. Se eu revelasse meus poderes em público, provavelmente
me
prenderiam e tentariam desesperadamente me transformar numa pessoa
normal.
Não
quero gastar nem uma caloria tentando salvar os seres que, se tivessem
a
chance, não hesitariam em me destruir.
Chego em casa e minha mãe me pergunta se foi tudo bem na festa. Digo
que foi
tudo ótimo, digo que demorei um pouco porque levei uma amiga no ponto
de ônibus.
Ela fica feliz, nem me pergunta como minhas roupas estão secas. Vou
para o
quarto, apago a luz e me divirto gerando pequenas bolhas de plasma no
escuro.
Tenho súper poderes, mas sou lúcido o bastante para não querer ser
herói.
*Súper - grafado desta forma pelo autor
Ronaldo Brito
Roque é autor do livro "A Menina do País das Ruivas"
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