BABEL
O grande Sol Branco de Taxmar emitia suas línguas de plasma com uma
precisão matemática, como tentáculos de pura energia varrendo centenas
de milhares de quilômetros de espaço profundo.
Indiferente a toda
aquela energia, a nave estelar Enterprise passou ao largo da gigantesca
estrela, com seu interesse voltado para energias muito menores, mas
potencialmente terríveis para o futuro da Federação dos Planetas
Unidos.
Trechos do
Diário do Oficial de
Ciências Spock:
"(...) A
missão que nos espera não
só será um desafio para a Lógica como porá em jogo toda a Ética da
Federação e o princípio básico de nossa sociedade.
Pela primeira vez a
Diretriz-Primeira poderá ser intencionalmente violada.
Será que assim
abriremos um precedente, jogando fora anos de exploração pacífica do
espaço?"
Guardando sua
estimada e última
garrafa de cerveja romulana, o doutor Leonard McCoy coçou a cabeça,
procurando no enorme painel de luzes e telas de informação onde estava
o relógio.
Ele chegou na
sala de reuniões ainda praguejando contra os malditos
engenheiros que se divertiam remodelando a nave a cada seis meses, e
nunca deixavam as coisas nos lugares.
- Algum
problema, doutor?
- Não, Spock.
E por favor sem suas piadinhas de vulcano sobre minha
pontualidade.
- Na verdade - disse o cientista de orelhas pontudas - o humor é um
conceito que em Vulcano...
- Senhores -
Falou o capitão Kirk - Temos uma missão vital pela frente,
portanto devemos deixar nossas pequenas rixas para depois.
O oficial de
ciências poderia por obséquio inteirar-nos dos detalhes da missão ?
Creio que o Engenheiro-Chefe Scott não leu com muita atenção os
relatórios.
- Scotty já
ia protestar, explicando que perdera noites em claro
consertando os motores da Enterprise, quando o sorriso de Kirk revelou
ser tudo apenas uma brincadeira.
- Como
devemos estar familiarizados - começou Spock- Taxmar é um pequeno
planeta do setor Mutara, descoberto por sondas automáticas 50 anos
atrás.
Seus habitantes são humanóides, muito parecidos com os humanos,
mas superam qualquer raça da galáxia em criatividade, inventividade e
capacidade de adaptação.
Diversas
imagens dos Taxmarianos e sua sociedade começaram a passar
pelas telas da sala de reuniões. Spock continuou a falar.
- Quando os
encontramos, eles ainda estavam em um estágio semelhante ao
século XIX na Terra, mas com uma diferença básica. A fonética e
gramática das diversas nações de Taxmar é de tal
forma complexa, que pouquíssimos Taxmarianos dominam mais de
um idioma. Toda a escrita deles é iconográfica, como os ideogramas
chineses da Terra, ou os arabescos de Rigel-7. Várias dezenas de
países, cada um com suas regras próprias de comunicação, nunca
conseguiram se entender.
- Sendo
extremamente belicosos, os Taxmarianos sempre viveram entre suas
guerrinhas, como os humanos, até o século XXI. A ciência, como tudo
mais em Taxmar, estava atrasada. Descobertas em um país, mesmo que
divulgadas, eram inúteis, pois os cientistas estrangeiros não
conseguiam sequer ler os trabalhos.
- E qual é o
problema do planeta então, Spock ?
-
Fascinantemente simples, meu bom doutor McCoy. Há 50 anos eles mal
haviam descoberto usos práticos para a eletricidade. 30 dias atrás uma
de nossas sondas detectou explosões atômicas na superfície de Taxmar.
Neste momento eles estão desenvolvendo protótipos rudimentares de
espaçonaves movidas a fusão nuclear.
Simplesmente eles pularam todo o
processo de foguetes químicos. Nessa progressão em mais 50 anos eles
descobrirão o segredo da Dobra Espacial e se espalharão pela galáxia.
Crianças com poderes de reis. Eles cometeram o maior -se me permite a
palavra- pecado que uma civilização pode ousar: Poder sem maturidade.
- E o que
causou isso, Spock ?
- Fácil,
doutor. Os Taxmarianos são extremamente inteligentes, e nenhum
simples habitante do planeta deixa de se distinguir em alguma área do
conhecimento. A massa crítica de cérebros para desencadear tal salto
tecnológico já existia, mas eles não conseguiam se comunicar. graças a
nós, esse "problema" foi resolvido, e todos eles falam a mesma língua.
- Como,
"graças a nós" -perguntou McCoy, indignado.
- Uma de
nossas sondas orbitais deixou de se comunicar com a Base
Estelar 47, responsável pelas pesquisas neste setor. Apesar de muito
difícil de acontecer, esse tipo de revés existe, e é tido como normal.
Outra sonda foi providenciada, e a sonda muda foi esquecida.
Descobriu-se depois que um meteoro passou próximo à sonda, tocando-a de
raspão. Sua órbita foi alterada, e graças a mecânica celeste um barco
de pescadores observou uma estrela cadente mergulhar no oceano, voltar
à tona e começar a emitir um bip de localização.
- Bonito,
eles pegaram uma sonda nossa. E daí ?
- E daí que,
depois de analisada por uma junta de notáveis cientistas,
nossa sonda foi desmontada, dissecada e, o que é pior, entendida. Entre
outras coisas que eles descobriram, foi o nosso Tradutor Universal.
Graças a ele todas as nossas comunicações com a maioria das raças da
Federação acontecem de forma transparente. Ou o senhor acha mesmo que
todos os Vulcanos falam Klingon, Andoriano ou Rigeliano ?
- Eu sei o
que é o Tradutor Universal, seu petulante de sangue verde.
- Então o
senhor deve imaginar o impacto que ele teve, ao ser copiado e
difundido pelo planeta. Logo a sociedade inteira, não só a ciência,
avançou de forma assustadora. Muita coisa não era sequer produzida.
Ainda na prancheta de projetos se tornava obsoleta de um dia para o
outro.
- E você acha
que esses Taxmarianos vão representar uma ameaça para a
Federação ?
- Eu não acho
nada, doutor McCoy. Quem acha são os psicólogos da
Federação. E a ameaça não é para a federação, mas para milhões de
planetas em condição de inferioridade.
Os Taxmarianos estão começando a
falar em Espaço Vital e supremacia da Raça Taxmariana sobre as outras
intelectualmente inferiores.
- E nós temos
o direito de impedi-los ?
Calado até
então, James Kirk opinou:
- A questão,
meu caro doutor, é: Nós temos o direito de intervir, ou
temos o dever de intervir ? Fomos nós que os lançamos nessa corrida
tecnológica, mas como podemos retirar o conhecimento que eles obteram ?
Nós já enfrentamos situação semelhante, mas, se todos se recordam, os
Klingons deram armas de fogos para uma facção de uma luta tribal, e nós
demos as mesmas armas para a outra facção, depois de impedir os
klingons de futuras intervenções. Nesse caso é tudo mais complicado.
- Com
certeza, mas nào estamos violando a Diretriz-Primeira ?
- Um problema
filosófico e tanto, senhor Scott. Vejamos o que diz a
Diretriz.
Computador ! -disse Spock- leia para nós o texto da
Diretriz-Primeira.
Uma agradável
voz feminina,
encobrindo milhões de cálculos por segundo e muitos anos de pesquisa,
começou a falar:
- Computando.
Diretriz-Primeira,
regra ética básica da Exploração Espacial da Federação Unida dos
Planetas.
"Como o direito de cada espécie de
viver de acordo com sua evolução cultural normal é considerado sagrado,
nenhum membro da Frota Estelar deve interferir com o desenvolvimento
saudável de uma vida ou cultura alienígena.
Tal interferência inclui a
introdução de saber, força ou tecnologia superior em um mundo cuja
sociedade é incapaz de manejar tais vantagens prudentemente.
O pessoal
da Frota Estelar não deve violar esta Diretriz-Primeira, mesmo para
salvar sua vida e/ou sua nave, a menos que esteja agindo para remediar
uma violação superior ou uma contaminação acidental da dita cultura.
Esta Diretiva tem precedência sobre todas e quaisquer outras
considerações e carrega em si a mais alta obrigação moral"
Um silêncio
respeitoso encheu a
sala, até que McCoy falou:
- Não seria
este o caso de remediar uma contaminação anterior ?
- Sim,
doutor, mas para fazer isso teremos que fechar as portas do
espaço para Taxmar. Eles iriam cair em um beco sem saída da evolução.
Nenhuma sociedade pode sobreviver sem o espaço. Estaremos remediando
uma contaminação acidental extinguindo uma sociedade. Valerá o preço ?
- É a
existência da nossa sociedade contra a deles, Spock.
- E qual a
argumentação lógica que nos prove mais merecedores da
existência que eles ? Lembre-se, doutor, eles podem ser moralmente
deficientes do nosso ponto de vista, mas o fato de não usarmos a força
para impor-lhes nossos valores é que nos torna diferentes. Percamos
isso e podemos pedir naturalização Taxmariana.
A sirene de
alerta vermelho interrompeu as divagações filosóficas de
todos, e enquanto a maioria dos presentes corria para seus postos, o
capitão Kirk se dirigiu para o intercomunicador da parede próxima:
- Chekov, o
que houve ?
- Um míssel
balístico foi lançado. Pensamos que fosse mais alguma
guerra-relâmpago no planeta, mas ele vem em nossa direção.
- Muito bem.
Analise o poder destrutivo do artefato e assim que ele
entrar em uma distância que possa nos causar danos, destrua-o. Estamos
indo para aí.
-
Aparentemente já sabem de nossa existência - disse Spock, no elevador
para a ponte de comando-
-
Aparentemente nossa menor preocupação é com contaminação tecnológica.
Logo vão nos superar.
Na ponte de comando, a aproximação do mensageiro da morte lançado do
planeta não causou muita preocupação. Com os escudos e defletores
ligados, a Enterprise poderia resistir facilmente a um ataque com
simples armas nucleares. O que contava era a petulância dos
Taxmarianos, em atacar uma nave em condição tão flagrantemente superior.
- Devemos
responder fogo, capitão ?
- Claro que
não, Chekov. Spock, já descobriu como anular o presentinho
de nossos amigos lá de baixo ?
- Claro,
capitão. A eletrônica deles é bem simples, eles ainda não
descobriram a optoeletrônica, e em vez de luz eles trabalham com
eletricidade, portanto são vulneráveis a interferências externas e...
- E o quê, Spock ?
- Eu acho, e
preciso analisar mais um pouco, que podemos eliminar o
perigo de Taxmar, respeitar a primeira diretriz e deixar o Universo
seguir seu curso.
- Fascinante
-disse o doutor McCoy, que acabara de chegar na ponte- Como
você pretender fazer isso ? Pedindo para que eles deixem a galáxia em
paz ?
- Não,
doutor. Mas para isso vou precisar de toda a capacidade de
processamento do computador da Enterprise. Isso inclúi os sistemas de
defesa, e assim ficaremos vulneráveis a ataques durante a realização de
meu plano.
- Certo,
senhores. Não vou pedir para Spock entrar em detalhes, pois
confio nele o bastante para seguir seus conselhos. Mas antes vamos nos
livrar de nosso visitante indesejado. Chekov, qual a distância do
míssel de Taxmar ?
- Quarenta
mil quilômetros e se aproximando. Torpedos fotônicos e
Phasers travados no alvo.
Vamos ver de
quê é feito o aço Taxmariano -disse Kirk, rindo e olhando
para McCoy, que estava ciente do gosto do capitão por objetos antigos e
expressões arcaicas - Senhor Chekov, armar torpedos fotônicos. Disparar
quando quiser.
Uma partícula de luz se desprendeu de seu berço da Enterprise, e seguiu
firme em seu caminho em direção ao míssel inimigo. Quando o computador
interno do torpedo (ele mesmo mais poderoso que qualquer máquina em
Taxmar) detectou uma distância mínima entre ele e o míssel, ativou seus
circuitos de disparo.
Um encontro desigual ocorreu, pois em uma arma
nuclear uma ínfima fração de matéria é convertida em energia, e apesar
de ser impressionante aos olhos humanos, não é nada comparada a total
aniquilação gerada por um torpedo fotônico, quando quantidades de
matéria e antimatéria são misturadas, convertendo cem por cento de sua
massa em energia.
- Alvo
neutralizado, capitão.
- Muito bem.
Todos passem o controle de suas subseções do computador
para o senhor Spock. Fiquem apenas com o mínimo necessário para operar
a nave.
- Obrigado,
capitão - disse Spock
Durante
horas, com o auxílio dos recursos de processamento da
Enterprise, Spock catalogou todas as fontes de informação do planeta,
definindo a localização de cada banco de lingüística, cada bit de
informação sobre a tecnologia desenvolvida a partir da sonda da
Federação.
Ao mesmo tempo todo o maquinário construído a partir de tal
tecnologia foi localizado. Logo os bancos de dados da Enterprise
continham praticamente a descrição de um planeta. Sem contar que os
sensores atualizavam em tempo real a posição dos aparatos tecnológicos
que se encontravam em movimento, incluindo relógios, rádios
subespaciais e armas.
- Estou
pronto para executar meu plano, capitão.
- Esteja a
vontade, Spock. mas diga ao menos o que vai fazer.
- A idéia
básica é simples. Localizei todas as máquinas construídas a
partir de nossa contaminação. Pretendo usar feixes de pulsos
eletromagnéticos para inutilizar todos os componentes eletrônicos
desses aparelhos. Incluindo aí os componentes das máquinas das fábricas
de componentes. Eles não poderão fabricar novas peças sem suas fábricas.
- É, seu
gênio vulcano -disse McCoy- E que tal as plantas armazenadas
nos arquivos deles ?
- Felizmente,
doutor, eles já passaram da Idade do Papel. Toda a
informação em Taxmar é armazenada digitalmente. Eles somente utilizam
papel para diplomas comemorativos e alguns poucos livros. Como nós,
atualmente. Assim, e somente por isso, meu plano é viável. Vou apagar
toda e qualquer referência a nossa tecnologia dos computadores deles.
- A sociedade
vai virar um caos !
- Talvez,
doutor. Mas se os Taxmarianos merecem a fama que têm, eles
superarão isso, e retornarão ao estado em que se encontravam antes do
acidente com nossa sonda. Lembre-se que com o nosso Tradutor Universal,
ninguém no planeta se aventurou a aprender outras línguas. terão que
começar do zero. Talvez eles se destruam, como quase o fizeram, mas
talvez eles aprendam, e essa infância mais prolongada seja o que eles
precisam.
- Muito bem,
Spock. e quando você vai implementar esse corte
epistemológico na sociedade Taxmariana?
- Andou
fazendo sua lição de filosofia, doutor ? Bem, na verdade eu o
fiz enquanto conversávamos.
Mais tarde, nos aposentos do capitão, os oficiais da Enterprise se
reuniram para comentar (não comemorar) a missão cumprida. Entre goles
de cerveja romulana e uísque do Tennesse, McCoy se aproximou de Spock e
presenteou-o com um livro, um livro de verdade,em papel de algodão e
impresso em alguma tipografia que resistiu a 300 anos de
informatização.
Havia apenas um cartão com uma dedicatória e um trecho
ressaltado pelo marcador de feltro:
"Sempre achei
você impossível,
Spock, mas dessa vez você conseguiu se
superar em sua megalomania. Mas cuidado"
Leonard McCoy
O trecho
marcado ia desde o capítulo inicial da história, e terminava
em:
"E são um
povo tão empreendedor,
disse o Senhor, que ao empenhar-se em um objetivo, não o largarão até
tê-lo cumprido"
Gênesis, 11:6
Rio de
Janeiro, 31/8/92
Carlos
Cardoso é colunista do MeioBit
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